Você despreza o que deveria guardar a sete chaves
A rotina, o arroz com feijão, o bom dia dito sem pensar. Mas é nisso que a vida se ancora.
“Durante o apagão de 2001, acendi velas e li Clarice Lispector no escuro.
O mundo parecia colapsar e, ainda assim, havia poesia.”
— de um caderno velho esquecido numa mudança, eu mesma no auge dos meus 13 anos de rebeldia, tristeza e melancolia. Achei atual e atemporal.
O mundo pode estar desabando — e provavelmente está.
Mas mesmo assim, tem gente lavando louça, varrendo quintal, fazendo café pra alguém que ama.
Uma grande amiga revoltosa disse que é alienação. Eu discordo.
Pra mim é resistência.
É fácil olhar para a história e ver apenas os gritos, as revoluções, os tratados.
Mas olhe mais perto.
Entre uma marcha e outra, havia uma mulher bordando.
Havia uma avó plantando erva-doce no quintal.
Quando os impérios caem, é no chão de casa que a gente aprende a ficar de pé.
Enquanto drones sobrevoam territórios em guerra, alguém acaricia as folhas da samambaia pendurada na cozinha.
Enquanto discursos inflamados tomam as redes, alguém corta alho e cebola para um refogado simples.
Porque no fim, a vida não para.
E mais: é por ela que tudo se move.
A guerra não é só entre exércitos —
É entre o sensível e o insensível.
Entre a pressa e o tempo de cultivar.
Não se morre só por bombas.
Se morre devagar, no excesso de metas e na escassez de alma, nos domingos sem conversa, nos afetos robotizados.
A Palestina sangra. A Ucrânia sangra.
Mas quem diz que o bairro ao lado não sangra também?
Quando uma mulher perde a vontade de cozinhar para si mesma, quando um homem deixa de brincar com o próprio filho porque está sempre cansado demais, isso também é perda. Isso também é luto.
O mundo não adoece de uma vez.
Ele vai murchando onde ninguém está olhando.
É por isso que o amor ao cotidiano não é fuga — é fundação.
É quando você escolhe fazer um chá de camomila no fim do dia.
Quando senta no chão da sala pra ouvir a criança contar como foi a escola.
É nesse momento que você está impedindo um mundo de ruir.
Porque o que sustenta o que é grande é o que é pequeno.
Na série The Last of Us, que acabo de ver, o episódio mais memorável não foi sobre zumbis.
Foi sobre dois homens fazendo morada um no outro, num jardim de morangos plantado no fim do mundo.
A força da arte não está nas explosões.
Está no que acontece depois que a poeira baixa.
A rotina não é o vilão.
O que cansa não é o cotidiano.
É o cotidiano sem alma.
É viver com o piloto automático ligado, transformando cada gesto em tarefa, cada momento em métrica, cada conversa em ruído de fundo.
Mas quando o cotidiano é habitado com presença, ele vira ritual.
E ritual é o que transforma água em batismo, pão em partilha, cama em templo.
“Não existe nada mais revolucionário hoje do que cuidar bem de uma planta.”
— ouvi isso de uma amiga, enquanto ela borrifava as folhas de sua jiboia.
A sua vida comum é o que os grandes querem destruir.
Porque gente que ama suas manhãs não compra qualquer promessa de milagre.
Gente que honra o próprio corpo não se curva à pressa.
Gente que tem vínculos reais não se deixa manipular por narrativas de ódio.
Por isso, há uma guerra — sutil, contínua — contra o senso comum, contra a modéstia, contra o bem-estar descomplicado.
É a guerra do algoritmo que quer que você se compare.
É a guerra da produtividade que quer que você se odeie.
É a guerra do espetáculo que quer que você se sinta pequeno demais pra contar.
Mas eu estou aqui para te lembrar, que você é o centro da sua história.
E o mundo só muda quando muda a forma como você faz o seu café.
Quando as coisas estiverem ruins, comece varrendo a casa.
Arrume o quarto. Acenda uma vela.
Escute sua própria respiração como se fosse uma oração.
Plante manjericão.
Lembre que nem todo mundo precisa ser herói — mas todo mundo pode ser semente.
Porque quem sustenta o mundo são as pessoas que lembram o nome da flor que nasceu no canteiro.
São aquelas que sabem a hora certa de desligar o celular.
A maior parte do mundo é salva por gente que não aparece nos livros de história.
Mas que escreve a própria com gestos miúdos.
E a vida, essa grande épica secreta, agradece.
Sua vida importa muito. Cuide dela.
Com afeto e café passado,
Andressa.
na foto, meus pé de couve.